Numa manhã de domingo, daquelas de
verão forte, Pedro mal comeu o pão torrado que sua mãe deixara antes de mais um
dia de trabalho, foi logo pegando uma bola de borracha, bem desgastada e desceu
as escadas do morro correndo em direção ao campinho de terra batida que havia
ali perto.
imagem em: https://goo.gl/2xK6jw
O jogo de solteiros e casados da
comunidade tinha hora para começar e a molecada queria adiantar os trabalhos.
Os holofotes ligados; torcida eufórica gritava “Pedro Gol” num coro repetitivo
e marcante; seus colegas se acomodavam para esperar a entrada do capitão do
time do Flamengo. Quando Pedro tomou fôlego para então correr para o centro do
campo e receber a mais calorosa saudação...
“O que é isso moleque?” Indagava um
homem vestido com uma roupa incomum para um dia ensolarado de fim de semana.
Botas pretas, calças de um tecido reforçado de tons rajados em cinza, um colete
cheio de trecos, mangas longas, capacete e nas mãos a arma igualzinha à do
último joguinho que Pedro jogara na sala de acesso. “Tá de olhos fechados de cara pro sol!
Pirou?”, continuou com uma voz firme aquela figura que parecia saída de uma
história em quadrinhos, tocando-lhe um dos ombros.
De um susto, Pedro saiu daquele
breve transe e situou sua realidade. Chinelos de dedo gastos pelo uso das brincadeiras
de pega-pega e de esconder; shorts puídos pela lavagem no tanquinho que sua mãe
fazia todos os dias; as pulseiras coloridas da moda, que enchiam quase a metade
de seu braço esquerdo. Deixando a o bola cair ao chão e quicar levemente em
direção ao pé direito, admirado com aquela figura, respondeu: “É que eu sempre
respiro fundo antes de entrar no campinho pra jogar com meus amigos”.
“Mas hoje é dia de ocupação! Não
vai ter joguinho nenhum!” Ríspido e quase bramando, continuava o herói dos
quadrinhos ditando a ordem. “Vaza todo mundo! Não quero ver um vermezinho aqui
em dois segundos!”. Pedro, então, piscou rapidamente fitando os olhos daquela
figura indaga: “Tio, podemos jogar com vocês, então? É facinho, só apertar o botão do tiro quando alguém aparecer. Meu
jogo é sinistro e...”. Antes que Pedro terminasse de falar recebe um baita empurrão
do herói dos quadrinhos e caiu de costas. Começava um grande tiroteio entre
policiais e traficantes que desconsideraram a panfletagem dos dias anteriores
informando local e hora da chegada das forças do Estado.
imagem em: https://goo.gl/78uAP9
E era tiro para todo o lado e Pedro
sentiu medo e buscou abrigo. Não sabia se corria para perto dos policiais ou
para casa, de onde os tiros também partiam. Correu para perto de um muro, mas
como havia esquecido a tão estimada bola borracha, ele se achava no dever de
por a salvo seu único brinquedo. Aproveitou uma breve pausa na cadência dos
disparos, olhou para um lado e para o outro, como se fosse atravessar uma rua
com tráfego pesado, puxou mais uma vez o fôlego e foi. Pegou a bola e correu
como um corredor dos 100 metros rasos para debaixo de sua cama.
Assustado, sozinho em casa, acabou
adormecendo, mesmo ao som de tiros esporádicos. No final da tarde, já começando
a esfriar, os policiais falavam mais alto, mais leve, numa atmosfera que lhe
parecia familiar. Lembrava o churrasco na casa de seu tio que morava mais perto
do asfalto, mas sem música. Resolveu sair e dar uma espiadela pela fresta da
porta da frente.
Pronto, estava tudo em ordem. Sua
casa cercada por heróis de quadrinho, com armas das quais nem nos videogames
ele havia visto. Holofotes reais iluminavam o campinho de terra batida, mas
havia bem no centro uma caixa, pintada em azul claro e branco, com faixas e
letreiros que ele não conseguia ler. Repórteres de colete estranho falavam com
tom e servis duras diante de câmeras e outros de coletes. Parecia uma coletiva
depois do jogo que ele costumava assistir com sua mãe aos domingos.
Nem mãe, nem herói saído dos quadrinhos, nem mesmo seus colegas de
futebol, nem aquele moço de mecha branca que aparece da televisão todas as
noites, simplesmente ninguém conseguiria explicar o que havia acontecido
naquele dia, nem o novo jeito de viver naquele bairro que era tão conhecido por
Pedro. Passar pelas passarelas apertadas e escadarias íngremes, mesmo agarrado
a uma das pernas de sua mãe, deixaria, sem paz, aquela mesma paz que fazia com
que ele sonhasse todas as vezes antes de começar uma nova brincadeira. No meio
do campo não teria mais uma bola esperando para começar o jogo.
[1] Trabalho entregue como avaliação
parcial à disciplina Oficina de Texto I, do 1º Período do Bacharelado em Segurança Pública e Social, da Universidade Federal Fluminense (UFF), no dia 19/09/2014
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